Making of
14 Abr 2023
Making of do livro “Mar negro”: Ana entrevista Ana
Ana Pessoa conversa com Ana Pessoa a propósito do Mar negro, a nova novela gráfica da coleção 2 Passos e 1 Salto e o 100.º livro do Planeta Tangerina.
Ana, conta-me lá como é que isto tudo começou?
Depois do Desvio, eu e o Bernardo ficámos logo com vontade de fazer uma nova banda desenhada. Lancei-me ao argumento há coisa de três anos, sem saber muito bem o que estava a fazer. Por norma, nunca tenho uma direção muito pensada e, no que toca à banda desenhada, sinto-me sempre pouco confiante.
Porque sou uma nostálgica e quero sempre salvar as minhas histórias e personagens, escolhi como cenário o café de praia onde se passa a cena final do Desvio.
Os protagonistas surgiram quase imediatamente: a Inês e o JP, os empregados do café. A história foi aparecendo aos poucos, sempre em torno do café, onde a Inês trabalha atrás do balcão e o JP serve às mesas.
Já que falas no Desvio, qual te parece ser a maior diferença entre o Desvio e o Mar negro?
Penso que a maior diferença talvez seja o ângulo de abordagem. Enquanto no Desvio estamos sempre dentro da cabeça do protagonista, no Mar negro não temos acesso a um único pensamento. Ou seja: se no Desvio vemos tudo por dentro (os pensamentos, os sentimentos e as angústias do protagonista), no Mar negro vemos tudo por fora (assistimos às ações e aos diálogos).
Enquanto o Desvio era (e é!) uma banda desenhada muito lenta, feita de contemplação, pausas, monólogos interiores e cenas meio paradas de um único protagonista, quase sempre sozinho, num cenário interior, que também é quase sempre o mesmo (a casa do protagonista), o argumento do Mar negro tem um ritmo muito mais acelerado e inclui bastantes personagens, muitos diálogos, muita ação e muitos cenários (exteriores e interiores).
E tu? Também te sentiste mais acelerada?
Inicialmente tive dificuldade em gerir toda esta informação. Era preciso articular os diálogos com a linguagem visual. Por um lado, tinha de guiar o Bernardo pelos espaços e equipamentos do café e pelas tarefas que marcam o dia-a-dia destes protagonistas. Por outro, tinha de juntar aos movimentos das personagens as interações entre elas.
Resultado: cada uma das cenas incluía descrições muito longas, constantemente interrompidas por falas.
Queres dar algum exemplo?
Quero. Esta página do argumento (cena 9) tem apenas meia dúzia de falas (São mesmo meia dúzia!), mas inclui imensa informação descritiva.
E já agora aproveito para vos mostrar as quatro duplas a que esta página de argumento deu origem:
O argumento é realmente muito descritivo! Há assim mais alguma dificuldade que tenhas sentido com o argumento para banda desenhada?
Para mim, o maior desafio da banda desenhada tem sido a passagem de tempo: as horas, os dias, as semanas, os meses. Há coisas percetíveis, que não é preciso explicar. Por exemplo, o dia transforma-se na noite. Mas como é que se assinala outro tipo de passagens sem cair em lugares-comuns? Por exemplo, sem mostrar o mesmo cenário no verão e depois no inverno e perceber as diferenças (chuva, árvores sem folhas, etc.). Como é que se assinala a passagem do tempo sem ter de acrescentar aquelas frases desengraçadas ao estilo: “No dia seguinte…” ou “Alguns meses mais tarde…”?
Não sendo conhecedora da linguagem BD, testei várias estratégias. É claro que isto foi mais um exercício intuitivo do que propriamente um exercício teórico.
Uma das estratégias que segui foi a repetição das manhãs. Em três momentos (ou seja, em três dias diferentes) assistimos ao percurso da Inês até ao café. Quando escrevi estas cenas já desconfiava que seriam das mais bonitas do livro, porque o Bernardo é tremendo a captar esta paisagem da praia. Vejam lá!
Esta repetição situa os leitores: já sabemos que estamos num novo dia – no caso, numa nova manhã – e também sabemos que estamos a caminho do café.
Outra estratégia que segui foi sugerir a passagem do tempo na fala de uma personagem. Ou seja, em certos momentos do livro há uma voz em off que dá conta da passagem do tempo no seu próprio discurso.
Neste exemplo, é a amiga Vera que fala sobre a passagem do tempo (o dia de hoje, o dia de amanhã, a semana seguinte e finalmente o inverno). E é este discurso da amiga que permite avançarmos uns quantos meses na história.
Só mais uma pergunta sobre o argumento: no livro há um encontro (e desencontro) entre duas raparigas chamadas Inês. A certa altura, a nossa Inês parece estar até um pouco obcecada com a outra Inês. Quiseste levar a questão da identidade ao extremo?
Bem, tu sabes a resposta porque tu és a Ana e a Ana sou eu! Mas bom… Sempre gostei do tema do doppelgänger, a ideia de alguém encontrar um duplo, uma pessoa que, sendo idêntica, é ao mesmo tempo o completo oposto: o gémeo louco, o clone descontrolado. A ideia assustadora de podermos encontrar os nossos sósias ou de atravessarmos o espelho e acedermos de alguma forma a uma versão alternativa de nós próprios.
A cultura popular está cheia de duplos que nos confrontam com várias dualidades: o bem e o mal, a razão e a emoção, o real e o sonho, etc. O Fausto vende a sua alma, a Alice cai na toca do coelho, o Peter Pan perde a sombra, a Coraline atravessa o espelho. Tudo mecanismos para nos confrontarmos com a rutura, com a alienação, com uma vida paralela, com uma versão melhor ou pior. É um tema muito marcante na literatura e no cinema. Dr Jekyll e Mr Hide, Dorian Gray e o seu retrato, Clark Kent e Superhomem, e muitos outros clássicos: Vertigo, Persona, Drácula, Frankenstein.
No passado fiz várias experiências com esta ideia de nos partirmos ao meio ou de nos duplicarmos. Escrevi sobre um homem que perde o reflexo, sobre um autor que perde o narrador, sobre uma mulher que persegue um homem e acaba perseguida por esse mesmo homem, mas nunca gostei do efeito alegórico destes duplos. Eram demasiado simbólicos, demasiado instrumentais.
Por outro lado, não me interessa muito o lado mais fantasmagórico da transformação. Queria aproximar-me do tema do duplo sem ter de atravessar um portal para outra dimensão, sem ter de transformar pessoas em monstros ou insetos. Ficamos sempre deste lado, com os pés no mundo real. Mas há uma ambiguidade que surge na história e que me cativou desde o início. Um fascínio verosímil, que não chega a cair na loucura. Acho eu!
Tinha muito medo de que esta questão da duplicidade fosse confusa. Parecia-me difícil concretizar isto. Há duas personagens com o mesmo nome, que chegam até a encontrar-se. O risco de confundirmos o leitor era grande. Mas acho que conseguimos! O mérito aqui é do Bernardo, que teve de criar estas duas raparigas, aproximando-as e ao mesmo tempo distinguindo-as.
E para finalizar, diz-me por favor o que mais desejas para este Mar negro?
Eu desejo o mesmo que tu: que o Mar negro chegue a muitos leitores! Quando um livro sai para o mundo é esse sempre o desejo de quem o cria: que o livro encontre muitos leitores, muitas almas gémeas, que os leitores se entusiasmem com o livro e que o partilhem. Para que o livro tenha muitos clones, muitas edições, muitas traduções, muitos irmãos gémeos por todo o lado!