7 perguntas a Joana Estrela

Joana Estrela chegou ao Planeta Tangerina em 2016, após vencer o Prémio Serpa para Álbum Ilustrado. Desde então, já publicou vários livros nesta casa. Falámos com a Joana sobre o seu último trabalho, “Menino, menina” — um livro que fala sobre a identidade de género e convida todos os leitores a celebrar a diversidade, a liberdade e o respeito pelos outros.



1. No Planeta Tangerina publicámos há uns meses uma novela gráfica (“A Época das Rosas“) que reflete sobre a igualdade de género. Agora chega este teu “Menino, menina” que se debruça mais sobre a identidade. É impressão nossa ou os problemas de género estão mesmo em cima da mesa?

Acho que a identidade em geral, quem nós somos ou como percebemos os outros são questões que sempre fizeram parte da literatura e da literatura juvenil. Acho que agora, se calhar, estamos a perceber como é que o género entra nessa mistura e como é que ele faz parte da nossa identidade e influencia a maneira como as outras pessoas nos veem. Isso tudo faz-nos pensar no que é que significa ser rapaz ou rapariga, se são coisas assim tão opostas ou se são as únicas opções.


2. Em que momento este “Menino, menina” surgiu pela primeira vez na tua cabeça?

A ideia do livro surgiu por causa de umas fotos. Eu estava a preparar uma apresentação para outro livro (“Os vestidos do Tiago”) e nessa apresentação eu mostrava duas fotos minhas em miúda, com idades diferentes. Reparei, na altura (e achei piada), que se eu não soubesse que era a mesma pessoa, se não soubesse que era eu e olhasse para aquelas duas fotos, provavelmente ia pensar que eram um menino e uma menina. E então, não sei se veio daí, mas um dia lembrei-me: e se eu fizesse um livro sobre isso? Sobre como só de olhar tu não sabes se alguém é um menino ou uma menina. Acho que também é importante questionarmos porque é que pensamos assim, porque é que precisamos de saber logo à partida e lembrarmo-nos de duvidar das primeiras impressões. E foi a partir daí que o livro foi crescendo.


3. Já não é a primeira vez que trabalhas estas questões. A discriminação faz-te chegar a mostarda ao nariz?

Há alguns anos, quando eu acabei a faculdade, fui trabalhar para uma associação onde estive pela primeira vez em contacto com pessoas de identidades de género não-binárias, trans ou que estavam a passar por um processo de transição, e que eram pessoas que, à primeira vista, não se conseguia saber só de olhar para elas se eram um homem ou uma mulher ou se se identificaram de outra maneira.

Foi a primeira vez na vida, como adulta, em que estive numa situação assim e fui-me apercebendo que isso me deixava um bocado desconfortável por não perceber logo à partida “o que é que é” esta pessoa. E acho que tive de me sentar um bocado com este desconforto e perceber porque é que aquilo me estava a incomodar — porque na verdade, de uma forma lógica, eu não preciso de saber. Eu posso perguntar os pronomes da pessoa e posso perguntar como é que ela quer ser tratada, mas até a ideia de ter de perguntar e não poder assumir à partida era nova, fazia-me sentir que estava a fazer qualquer coisa errada de alguma forma… que havia qualquer coisa super crucial na maneira como eu interajo com as pessoas que estava a falhar. Acho que isso me fez aperceber de como o género faz parte, de uma maneira tão enraizada, da maneira como nos relacionamos, identificamos as outras pessoas e percebemos os outros — e ao mesmo tempo que não devia ter esse peso todo. Na verdade, não me faz assim tanta falta saber o género da pessoa logo à partida, quando a estou a conhecer… na maior parte das situações. E é um bocado difícil sacudir a formatação de todas as coisas com que tu cresceste. Pelo menos para mim é, e eu gostava que novas gerações não tivessem de esperar vinte e tal anos para começar a pensar nessas coisas e a questioná-las.


4. Porque é que o respeito pela identidade de género e a liberdade de orientação sexual ainda causam medo e desconfiança?

Eu acho que nós realmente temos medo e desconfiança daquilo que não entendemos e que vem questionar coisas que tínhamos quase como alicerces na nossa vida, como coisas que nunca questionámos sequer. Acho que é porque ninguém quer sentir que está errado! Isso às vezes também pode causar desconfiança porque há certas coisas que envolvem aceitar que há coisas que nós não entendemos; que há pessoas com experiências e com identidades que não têm nada a ver com a nossa e nem por isso são menos válidas.


5. Como podemos ajudar estas pessoas (assustadas!) a lidarem com naturalidade com o assunto? Os livros e filmes ajudam?

Acho que a primeira coisa é perguntar às pessoas porque é que algo as assusta. Perceber isso vai ajudar, se calhar, antes de tudo. A mim, ajudou-me conhecer pessoas — pessoas que fossem diferentes de mim, que tivessem outras perspetivas, que tivessem vivido outras realidades. E acho que livros e filmes também nos proporcionam isso.


6. E como é que podemos participar na luta contra a discriminação?

Eu também sofro da cultura em que cresci e tenho os meus preconceitos e há coisas sobre as quais eu ainda não sei o suficiente. Acho que parte de lutar contra a descriminação é aprendermos a reconhecer essas coisas em nós próprios e também ajudar outras pessoas a encontrarem, a fazerem o mesmo, mas são elas próprias que vão ter de passar por esse processo de questionamento e de aprendizagem.


7. Este é um livro para os que nunca lidaram com estas questões, para os que já lidaram, para os que um dia talvez venham a lidar. Porque é tão importante chegar a todos?

É quase impossível viver em sociedade e o género não ser uma coisa que faz parte da tua vida. Acho que faz parte da tua vida antes de tu nasceres sequer, enquanto estás na barriga da tua mãe. É a primeira coisa que os teus pais sabem sobre ti, é a primeira coisa que perguntam sobre ti. Mesmo que seja uma coisa que só começas a questionar quando vais para o infantário ou para a primária ou muito mais tarde, esteve sempre lá e vai estar sempre lá. A não ser que o mundo mude imenso. É uma parte da nossa experiência social, de todos.